Manipulações Políticas: um Desafio para a Democracia Brasileira

Há alguns anos, ganham força, em nosso país, crenças infundadas sobre a política. Enquanto isso sobram problemas concretos que não enfrentamos. A reflexão de hoje compartilha dados que se contrapõem à histeria da corrupção e a duas crenças que apavoram uma parcela significativa da população: o temor de que a esquerda quebre o país e o risco do comunismo. O medo é uma das estratégias mais antigas de dominação e manipulação em massa. Mas para além do medo, essa estratégia também deteriora o nível da consciência sobre a realidade e inibe a participação social qualificada em escolhas públicas.

Segundo a professora de filosofa política Lisa Herzog (2024), o cerne da democracia é ser um tipo de governo em que todos, com igual força, participem das decisões no espaço público. Para que isso seja possível, é fundamental que as pessoas detenham conhecimentos verdadeiros e, também, conheçam as instituições políticas e suas práticas, entendendo como as políticas públicas são formuladas e implementadas. Sem esse conhecimento e sem a inclusão das pessoas nos processos de tomada de decisão, a democracia, na prática, pode ser considerada uma fraude. Assim, quem  estimula mentiras e interpretações falsas da realidade social e política age em proveito próprio e dificulta a evolução do projeto de democracia em curso em uma sociedade específica.

Para termos uma noção mais clara de como as democracias estão em dificuldade no mundo, podemos analisar os índices do Democracy Index, da The Economist Intelligence Unit. Pela Index de 2023, apenas 24 dos 167 países do mundo(14,4%)  são democracias plenas. Neles vivem apenas 7,8% da população mundial. O restante da população mundial, 92,2%, vive em democracias frágeis, em países híbridos ou autoritários. Infelizmente, quando somamos os regimes autoritários puros com os híbridos, eles representam 55,7% dos países, abrangendo 54,6% da população mundial. As democracias frágeis, onde o Brasil tradicionalmente se encontra, prevalecem em 29,9% dos países. Até mesmo os Estados Unidos, também, estão neste grupo, o que mostra a seriedade da crise democrática em curso.

Em 2023, o Brasil obteve a nota de 6,68 no Democracy Index, com destaque positivo para o processo eleitoral (9,58), uma nota mediana em liberdades civis (7,35), e graves problemas no funcionamento do setor público (5,36), na participação política (6,11) e na cultura política (5,00). Isso não é surpresa, já que sabemos que o personalismo político impera no Brasil e a população trata a política com grande descrédito. A falta de confiança é resultado de diversos fatores, e um dos mais importantes é que os vencedores do jogo político frequentemente tratam a coisa pública com base em interesses privados, como comprovado pelos inúmeros escândalos de corrupção ao longo da história do país.

Em vez de focarmos na construção de uma política da moral, como sugere Pierre Bourdieu, nos distraímos com um mar de mentiras, falsas narrativas e crenças distorcidas. Esse cenário abriu ainda mais espaço para a ascensão da política fisiológica do "centrão" e do "baixo clero", além de figuras aventureiras, como youtubers e influenciadores políticos que exploram o medo e distorcem problemas que merecem enfrentamento concreto e objetivo.

Enquanto não tocamos nos problemas concretos, três narrativas falseadas alimentam a manipulação em massa:

1.        A falsa narrativa de que corrupção é exclusividade da esquerda: A corrupção é um fenômeno sistêmico que atinge todos os partidos e a sociedade como um todo no Brasil. O enfrentamento desse problema exige, antes de tudo, um compromisso com a verdade e com um sentido de coletividade. Para compreender a gravidade da situação, basta observar o gráfico do Ranking de Percepção da Corrupção da Transparência Internacional, que cobre o período de 2012 a 2023.

Fonte: Transparência Internacional do Brasil, 2024

As notas variam de 0 (corrupção extremamente forte) a 10 (pouca percepção de corrupção). No início da Lava-Jato, houve a percepção de que estávamos enfrentando a corrupção de forma efetiva, mas já em 2015 essa percepção começou a piorar, atingindo níveis mínimos nos governos Temer e Bolsonaro, sem nunca recuperarmos os patamares de 2014. No atual governo Lula, a nota voltou a cair, aproximando-se dos níveis mais baixos registrados em 2018 e 2019. Esses dados indicam que precisamos de um enfrentamento verdadeiro dessa frágil condição institucional, com a participação de todos os setores da sociedade. Não podemos continuar presos a narrativas desleais e hipócritas que evitam o verdadeiro enfrentamento e a responsabilização por nossas ações.

2.   A falsa narrativa de que a esquerda pode quebrar o país: analisando os dados econômicos desde 2002, vemos que, durante os governos da esquerda, o PIB cresceu e o desemprego caiu, com exceção do ano atípico de 2015, marcado pelo início do impeachment de Dilma Rousseff. Contrariamente à narrativa disseminada, os dados mostram que os governos de esquerda no Brasil tiveram um impacto positivo na economia, tanto no PIB quanto no emprego, ao contrário do que se observa nos governos de centro, direita ou extrema-direita. É claro que a conjuntura internacional e outros fatores também precisam ser considerados em uma análise mais aprofundada, mas é evidente que a ideia de que a esquerda quebra o país não se sustenta. Em 2023, o Brasil voltou ao nível de maior PIB desde 2014, e o desemprego também apresentou queda.

A falsa narrativa de que existe risco do comunismo no Brasil com a esquerda: Muitos brasileiros temem o comunismo, embora poucos realmente saibam o que ele significa. Segundo pesquisa da Datafolha realizada em 2023, 52% dos entrevistados acreditam que o Brasil corre o risco de se tornar comunista.

Em vez de fatos que sustentem essa percepção, o que encontramos é um imaginário popular repleto de simbologias, crenças e memórias mal construídas. De acordo com a historiadora Suelen Campos, esse imaginário foi propositadamente alimentado durante o regime militar, que, por meio das mídias e de ferramentas persuasivas, gerou medo, instabilidade e uma espécie de sufocamento dos movimentos oposicionistas. Esses movimentos passaram a ser vistos como representações do comunismo no Brasil — o que, atualmente, reflete-se na maneira como se fala da esquerda.

Políticos extremistas, sem qualquer compromisso com a qualidade da nossa democracia, utilizam esse imaginário como uma estratégia de manipulação em massa para avançar seus interesses. A esquerda, por sua vez, ainda não se preocupou em reposicionar esse debate de maneira mais convincente e verdadeira. Dada a importância que esse imaginário exerce sobre a nossa democracia, é crucial que universidades ofereçam mais pesquisas sobre o tema e que as instituições promovam debates amplos, a fim de reavaliar os sistemas de crenças que estão enraizados no inconsciente da população.

Podemos concluir que o Brasil está longe de ser uma democracia forte ou plena. Essa fragilidade deve ser atribuída a todos os partidos políticos, independentemente de suas ideologias, às instituições públicas e privadas, e à própria sociedade. No entanto, os discursos manipuladores que demonizam o pensamento divergente precisam ser responsabilizados, pois tornam o processo ainda mais difícil. Segundo Lisa Herzog, é possível, de forma coletiva, gerar e disseminar conhecimento de modo que uma visão de realidade compartilhada ajude as democracias frágeis a encontrar um caminho para uma evolução positiva.

 

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