Com a Bíblia na Mão e a Constituição no Lixo

A Câmara Municipal de Belo Horizonte aprovou, no dia 8 de abril, um projeto de lei que autoriza o uso da Bíblia como material paradidático nas escolas públicas e privadas da cidade. Com 28 votos favoráveis, 8 contrários e 2 abstenções, o texto agora será enviado à sanção do prefeito. A justificativa da autora é que o livro sagrado pode “disseminar conteúdos culturais, históricos, geográficos e arqueológicos”. Poderíamos achar graça, se não fosse sério.

 A escola não é catequeseA proposta parece ignorar algo essencial: a formação cognitiva das crianças e adolescentes. Diferentemente de pesquisadores acadêmicos — que podem analisar a Bíblia sob uma lente crítica, histórica ou literária — estudantes da educação básica não têm maturidade para diferenciar religião, cultura e ciência. Nessa faixa etária, o risco é claro: as crianças serão expostas a tentativas, ainda que de forma não oficial, de inculcação de crenças e valores específicos, violando o princípio da laicidade do Estado e a garantia da liberdade religiosa.

 De início, é bom atentar para algumas pérolas ditas pela autora e por defensores do Projeto que podem indicar com clareza o que pensam essas pessoas. Apenas dois exemplos bastam, embora pudessem ser muitos mais:

a) Flávia Borja (Progressistas), “Não estamos trazendo como material religioso. Poderia ser, mas não é esse o objetivo. O objetivo é o enriquecimento do conteúdo dentro das escolas”;

b) Cláudio do Mundo Novo (PL), “Quando você lê a palavra de Deus, é Deus falando no seu coração, é cura interior. Deus te ensina o caminho da verdade, das boas companhias, Jesus é o caminho”.

 

Um projeto que fere a laicidade do Estado

 A Ministra Cármen Lúcia, em decisão na ADI 5258, em 2021, nos ensina que a "laicidade estatal visa a proteger o Estado da influência sociopolítica e religiosa das igrejas." O que está em jogo aqui não é a Bíblia em si, mas a escolha de um símbolo religioso específico como conteúdo escolar “complementar”, sem qualquer mediação científica ou consideração pela diversidade cultural e religiosa da sociedade brasileira.

Qual o limite das possibilidades do Estado nesse tema? A Ministra ensina mais uma vez: o princípio da laicidade estatal admite uma dimensão positiva de ação do Estado, tão somente quando é para colaborar com a efetividade do interesse público, a partir de procedimentos dos entes federados que busquem defender a neutralidade estatal e a liberdade de religião. Será que os vereadores de Belo Horizonte já tiveram acesso a essa decisão?

 Um alerta é que este PL não é caso isolado. Cada vez mais vemos, em todos os níveis da República, projetos de lei que se baseiam em dogmas e crenças privadas — muitas vezes impulsionados por interesses eleitorais de certos nichos sociais. É o Estado sendo apropriado por agendas que ignoram os limites constitucionais e o pacto democrático.

 

Sociedade civil, é hora de agir

A sociedade brasileira precisa acordar. O Estado é poderoso demais para ser deixado exclusivamente nas mãos dos seus representantes. É necessário que os cidadãos e a sociedade civil organizada acompanhem de perto as ações dos legisladores, governantes e até mesmo dos julgadores. A política não pode ser um espaço entregue à polarização e ao obscurantismo. Debater educação exige responsabilidade. 

O projeto ainda pode ser vetado. E deve. Não por rejeição a uma fé específica, mas em respeito à Constituição. O que está em jogo é o tipo de sociedade que queremos construir: plural, democrática e crítica — onde todos tenham o direito de crer, não crer ou crer diferente.

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