O peso simbólico do asilo: quando a arbitrariedade se traveste de direitos 

Não há como invocar razões humanitárias. A menos que estejamos dispostos a desvelar o cinismo que, em certas condições, prevalece como lógica das relações sociais e institucionais. Provavelmente, diariamente, dezenas ou até centenas de pessoas morrem no Brasil e no Peru por falta de atendimento médico adequado. O asilo concedido pelo governo brasileiro à ex-primeira-dama do Peru, Nadine Heredia, condenada por corrupção, ainda que acometida de câncer, se inscreve no jogo simbólico das democracias imperfeitas: com muito esforço, as instituições justificam, mas a ferida na confiança e na legitimidade permanece.

Heredia foi condenada por lavagem de dinheiro e recebimento de recursos não declarados, inclusive da Odebrecht, em esquemas que envolviam financiamento ilícito de campanhas eleitorais. Trata-se de engrenagem já conhecida por nós, brasileiros, cujas consequências ainda reverberam, desde os escândalos da Operação Lava Jato — independentemente das críticas ao seu desfecho, o funcionamento estrutural da corrupção sistêmica ficou exposto.

Por corrupção sistêmica, pode-se entender, não apenas mecanismos de desvio de recursos, mas a apropriação contínua e organizada do aparato estatal — dentro e fora da legalidade — para beneficiar aqueles que ocupam posições institucionais nas redes de poder. Redes que atravessam partidos, empresas e burocracias em qualquer governo. É nesse tipo de ambiente que direitos são instrumentalizados, cargos se tornam escudos e legalidade se transforma em jogo de interpretação moldado por interesses privados.

Essa lógica não é exclusiva do Brasil, mas histórica nas democracias imperfeitas ao redor do mundo — grupo agora fortalecido com os Estados Unidos. Nelas, os princípios republicanos são sistematicamente relativizados. O problema, portanto, não é apenas jurídico. É político e simbólico. O Brasil, ao conceder o asilo, assume o gesto de proteger uma figura condenada por operar à margem da legalidade no país vizinho, ainda que o Peru tenha cooperado com essa arbitrariedade. Cada vez que um sistema político dá abrigo à ilegalidade, retrocede em sua capacidade de regeneração.

É necessário alertar, especialmente os partidos e grupos progressistas, que não há projeto democrático viável enquanto práticas típicas das democracias imperfeitas seguirem sendo a regra. A conivência com esses mecanismos por parte dos progressistas que orbitam o topo das estruturas de poder aproxima-os, perigosamente, daqueles que conspiram abertamente contra a democracia. É preciso dizer com todas as letras: a corrupção sistêmica e o desprezo pelas regras do jogo democrático não são menos danosos à democracia do que as tentativas de golpe. São formas distintas, mas igualmente eficazes, de corroer o projeto democrático.

Por isso, é urgente que a sociedade civil, os intelectuais públicos, as organizações democráticas e os partidos comprometidos com a transformação social assumam uma postura clara. Não basta denunciar os ataques à democracia vindos da extrema direita: é preciso também romper com os pactos silenciosos que perpetuam a impunidade das elites.

O futuro do projeto democrático no Brasil não se sustentará sobre o silêncio ou a ambiguidade. Ele dependerá da capacidade coletiva de dizer “não” às distorções que comprometem a justiça e a confiança social, venham de onde vierem. Nesse momento, o que está em jogo não é apenas o destino de uma ex-primeira-dama, mas o valor atribuído à democracia e à sua promessa de legitimidade.

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