Atalhos cognitivos e manipulação

15/8/2022

Faltam 48 dias para 2/10. A reflexão é para o que nos tira a capacidade de análise, de clareza, de conhecimento. Salman Rushdie, escritor anglo-indiano, que foi esfaqueado em Nova York há poucos dias por um americano em defesa do extremismo iraniano, afirmou, fazendo referência aos estragos da era Trump nos Estados Unidos, que “reconstruir a crença das pessoas na verdade será um longo processo” (Folha, 19/2/2021). Com a agressão que sofreu ele mesmo foi vítima de uma mentira do extremismo iraniano, nas mãos de um extremista americano.

Para situar a verdade, ele se ancora na escritora canadense Atwood, para diferenciar ficção e mentira. A ficção tenta falar sobre como interagimos e fazemos as coisas, revelando nossas verdades mais internas. Já o propósito da mentira é o de obscurecer a verdade. Mesmo se considerarmos que a política tem uma ética específica, bom lembrar que ela em nada autoriza a mentira ou a manipulação dos fatos. Fernando Henrique disse que ética da responsabilidade implica, muitas vezes, a ambiguidade na narrativa dos governantes, mas não a mentira. Trata-se da responsabilidade de evitar dizer tudo que sabe, para não prejudicar o país. Mas não é disso que Rushdie falava, nem é esse o nosso problema por aqui no Brasil.

Vamos tomar como exemplo o que o atual presidente afirmou em entrevista sobre “rachadinha”. O termo identifica, de forma pejorativa, a relação de contratação em que um político contrata uma pessoa, exigindo devolução por fora, de parte do salário para o político contratante. Ou seja, descreve um crime. Ele disse que praticamente todos fazem isso, tanto no Executivo, quanto no Legislativo.  Acrescenta que uns fazem legalmente, outros por fora. Completa a narrativa, dizendo que partidos de esquerda colocam, nos estatutos, o recolhimento de parte do salário como receita do partido.

https://www1.folha.uol.com.br/poder/2022/08/bolsonaro-diz-que-rachadinha-e-comum-e-nao-responde-se-ja-adotou-pratica.shtml

Nesse discurso, há pelo menos 2 mensagens-gatilhos que buscam aprisionar o eleitor em atalhos cognitivos que pode afastá-lo dos fatos:1) as denúncias de práticas de rachadinha que pesam sobre o presidente e familiares não são importantes, dado que todos têm essa prática:  e 2) os partidos da esquerda, os menores, colocam a rachadinha em seus estatutos. Os atalhos cognitivos para angariar votos são dois: a “rachadinha” é uma prática corriqueira e a esquerda é a pior, pois legaliza a prática em seus estatutos.

E quais são os fatos, quais são as evidências que temos para pensar a realidade relacionada com essas falas? Primeiro, existem denúncias de rachadinhas históricas, envolvendo o presidente e seus filhos, que estão sendo objeto de procedimentos na justiça. Se as denúncias foram acolhidas é porque a prática pode configurar crime e, em sendo comprovadas deveriam ser vistas como aspectos negativos para o presidente. Em relação ao segundo ponto, o inciso VIII, art. 15 da Lei 9.096/1995 define que os estatutos dos partidos, e não só de esquerda, podem prever contribuição financeira dos filiados.

O que precisa ser dito é que criar um paralelo entre os dois fenômenos é deliberadamente querer obscurecer a verdade e lucrar com a dificuldade de as pessoas perceberem o real. No caso do filiado de um partido, ele recebe um salário, seja aonde for que estiver trabalhando, e contribui com o partido com um dado percentual. Já no caso do contratado de gabinete de político que utiliza a prática da “rachadinha”, ele recebe seu salário e passa em dinheiro uma parte para aquele que o emprega.  São coisas muito distintas.

Portanto, independentemente de ideologia ou de preferência de voto, torço para que possamos cada vez mais colocar em prática mecanismos para nos auxiliar a nos aproximar da verdade.

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